quinta-feira, maio 05, 2011

Licenciamento

Muita gente me pergunta por que não existem produtos oficiais de Calvin & Haroldo, sendo que tantos como Snoopy, Garfield Recruta Zero, Turma da Mônica, etc, existem aos montes. Para responder essa questão nada melhor que ler o que o próprio autor, o Bill Watterson pensa sobre o assunto.

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Os quadrinhos foram licenciados desde o começo, mas hoje a comercialização de personagens populares de “cartoons” é mais lucrativa do que nunca. Produtos derivados – bonecos, camisetas, especiais de TV e assim por diante – podem transformar a tira certa numa mina de ouro. Todo mundo está procurando o próximo Snoopy ou Garfield, e imaginou-se que Calvin e Haroldo eram os candidatos perfeitos. Quanto mais eu pensava em licenciamento, porém, menos eu gostava. Eu passei quase cinco anos enfrentando a pressão do sindicato para comercializar a minha criação.

Numa era de comercialismo desavergonhado, minhas objeções ao licenciamento não são largamente partilhadas. Muitos cartunistas vêem a própria tira de jornal como um produto comercial, portanto consideram o licenciamento como uma extensão natural do seu trabalho. Como a maioria das pessoas pergunta, o que há de errado em personagens de tira aparecerem em calendário e canecas de café? Se as pessoas querem comprar o material, por que não dá-los a elas?

Eu tenho vários problemas com licenciamento. Primeiro de tudo, eu acredito que o licenciamento normalmente desvaloriza a criação original. Quando os personagens de quadrinhos aparecem em produtos incontáveis, o público inevitavelmente fica cheio e irritado com eles, e o apelo e valor do trabalho original são diminuídos. Nada tira o gume de um cartum novo e inteligente como saturar o mercado com ele.

Segundo, os produtos comerciais raramente respeitam como uma tira de quadrinhos funciona. Um tira verborrágica, de vários quadros, com conversa extensa e personalidade desenvolvidas não se condensa em uma ilustração para canecas de café sem uma grande violação do espírito da tira. As sutilezas de uma tira multidimensional são sacrificadas pelas necessidades unidimensionais do produto. O mundo de um tira de jornal deveria ser um local especial com a sua própria lógica e vida. Eu não quero que um estúdio de animação dê a voz de um ator a Haroldo e não quero alguma companhia de cartões usando Calvin para desejar um feliz aniversário às pessoas, e eiu não quero que a questão da realidade de Haroldo seja decidida por um fabricante de bonecos. Quando tudo que é divertido e mágico é transformado e algo à venda, o mundo da tira é diminuído. Calvin e Haroldo foi projetada para er uma tira e isso é tudo que eu quero que ela seja. È o único lugar onde tudo acontece do jeito que eu pretendo.

Terceiro, como uma questão prática, o licenciamento requer uma equipe de assistentes para fazer o trabalho. O cartunista deve se tornar um capataz de fábrica, delegando responsabilidades e supervisionando a produção de coisas que ele não cria. Alguns cartunistas não se importam com isso, mas eu entrei no mundo dos cartoons para desenhar cartoons, não para comandar um império corporativo. Eu me orgulho muito do fato de que escrevo cada palavra, desenho cada linha, colorizo cada tira de domingo e pinto cada ilustração dos livros pessoalmente. Minha tira é uma operação de baixa tecnologia, de um homem só, e eu gosto dela desse jeito. Eu acredito que é a única maneira de preservar o artesanato e manter a tira pessoal. Apesar do que alguns cartunistas dizem, aprovar o trabalho de outra pessoa não é a mesma coisa que você mesmo fazer.

Além de tudo isso, porém, repousa um assunto mais profundo: a corrupção da integridade da tira. Todas as tiras devem entreter, mas algumas tiras têm um ponto de vista e um objetivo sério por trás das palavras. Quando o cartunista está tentando falar honestamente e seriamente sobre a vida, então eu acredito que ele tem uma responsabilidade de pensar além de satisfazer cada capricho e desejo do mercado. Cartunistas que pensam que eles podem ser levados a sério como artistas enquanto usam protagonistas para venderem cuecas estão se iludindo.

O mundo de uma tira é muito mais frágil do que a maioria das pessoas percebe ou quer admitir. Personagens verossímeis são difíceis de desenvolver e fáceis de destruir. Quando um cartunista licencia seus personagens, sua voz é cooptada pelas preocupações financeiras de fabricantes de brinquedos, produtores de televisão e anunciantes. O trabalho do cartunista não é mais ser um pensador original; seu trabalho é manter seus personagens lucrativos. Os personagens se tornam ”celebridades”, endossando companhia e produtos, evitando controvérsia, e dizendo o que quer que alguém pague para dizer. Nesse ponto, a tira não tem alma. Com a sua integridade desaparecida, uma tira perde seu significado mais profundo.

Minha tira é sobre realidades particulares, a magia da imaginação, e a característica especial de certas amizades. Quem iria acreditar na inocência de um garotinho e seu tigre se eles se aproveitassem da sua popularidade para venderem badaluques de que ninguém precisa a preço exagerado? Quem iria confiar na honestidade das observações da tira quando os personagens são contratados como anunciantes? Se eu fosse minar meus próprios personagens assim, eu teria tomado o raro privilégio de ser pago para exprimir minhas próprias ideias e desistido dele para ser um vendedor comum e um ilustrador contratado. Eu teria traído minha própria criação. EU não me presto para esse tipo de cartunismo.

Infelizmente, quanto mais Calvin e Haroldo se tornava popular, menos controle eu tinha sobre o seu destino. Apresentaram-me possibilidades de licenciamento antes mesmo da tira completar um ano, e a pressão para capitalizar o seu sucesso aumentou desde então. Alcançar sucesso acima das expectativas mais loucas de qualquer um, apenas inspirou expectativas mais loucas.

Para por o problema simplesmente, eu havia assinado um contrato dando ao meu sindicato todos os direitos de exploração da Calvin e Haroldo até o próximo século. Porque é praticamente impossível entrar nos jornais diários sem um sindicato, é prática padrão dos sindicatos usarem sua posição de barganha superior para exigirem direitos que eles não precisam nem merecem quando fazem contratos com cartunistas desconhecidos. O cartunista tem poucas alternativas nos termos do sindicato: ele pode levar seu trabalho para outro lugar na chance improvável de que um sindicato diferente esteja mais inclinado a oferecer concessões, ele pode se auto distribuir e tentar atrair o interesse de jornais sem o benefício de reputação ou contatos, ou ele pode voltar pra casa e achar algum outro trabalho. A Universal não iria vender minha tira aos jornais a não ser que eu desse ao sindicato direito de comercializar a tira em outros meios. Na ocasião, eu não havia pensado muito em licenciamento e a questão não esta entre as minhas preocupações principais. Dois sindicatos já tinham rejeitado Calvin e Haroldo, e eu me preocupava mais sobre as consequências contratuais se a tira fracassasse do que se a tira tivesse sucesso. Ansioso pela oportunidade de publicar meu trabalho, eu assinei o contrato, e não foi até depois, quando a pressão de comercializar focalizou minhas opiniões sobre a questão, que eu entendi a encrenca em que eu tinha me colocado.

Eu não tinha recurso legal para impedir que o sindicato licenciasse. O sindicato preferia ter a minha cooperação, mas a minha aprovação não era de maneira alguma necessária. As nossas discussões um contra o outro ficaram mais amargas à medida que o cacife ficava mais alto, e nós tivemos um mau relacionamento por vários anos.

O debate tinha seus aspectos ridículos. Eu sou provavelmente o único cartunista que se ressentia da popularidade da própria tira. A maioria dos cartunistas está mais do que ansiosa pela exposição, riqueza e prestígio que o licenciamento oferece. Quando cartunistas brigam com seus sindicatos, normalmente é para ganhar mais dinheiro, não menos. E para deixar a questão toda ainda mais absurda, quando eu não licenciei, mercadorias clandestinas de Calvin e Haroldo apareceram para alimentar a demanda. Lojas de shopping vendiam abertamente camisetas com desenhos copiados ilegalmente dos meus livros, e camisetas obscenas ou relacionadas com drogas eram abundantes em campus de faculdades. Só ladrões e vândalos ganharam dinheiro com mercadorias de Calvin e Haroldo.

Durante anos, a Universal me pressionou para transigir num programa “limitado” de licenciamento. O sindicato concordaria em deixar de fora os produtos mais ofensivos se eu concordasse com o resto. Esta seria, em essência, a minha única chance de controlar o que aconteceria com o meu trabalho. A ideia de negociar princípios era ofensiva para mim e eu me recusei a transigir. De qualquer forma, eu e o sindicato não tínhamos nada para trocar de alguma forma: eu não me importava com as minhas noções de integridade artística. Com nenhum de nós valorizando o que o outro tinha a oferecer, um acordo era impossível. Um de nós iria pisotear os interesses do outro.

No quinto ano da tira, o debate tinha ido tão longe quanto era possível ir, e eu me preparei para parar. Se eu não pudesse controlar o que Calvin e Haroldo representavam, a tira não valia nada para mim. Meu contrato era tão unilateral que me demitir teria permitido à Universal me substituir com argumentistas e artistas contratados e licenciar minha criação de qualquer forma, mas a esta altura, o sindicato concordou em renegociar o meu contrato. Os direitos de exploração foram devolvidos a mim, e eu não irei licenciar Calvin e Haroldo.

Fonte: 10 Anos de Calvin & Haroldo - Volume 1 - Editora Best News

 
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